domingo, 11 de dezembro de 2011

Longe do meu coração – romance de Júlio Magalhães que retrata a emigração clandestina para França nos anos de 1960


1961: Início da Guerra Colonial e da emigração para França

1. 2011, que está perto do seu final, é o epicentro para a evocação do cinquentenário de duas efemérides fundamentais na história portuguesa contemporânea, intimamente ligadas entre si.
Em 1961 (é deste ano que falamos), começou a Guerra Colonial, neste caso em Angola, a qual haveria de estender-se às restantes províncias ultramarinas, como então se chamavam (Moçambique, Guiné, Cabo Verde) e mobilizar muitos milhares de jovens de todo o país e deixar marcas indeléveis no tecido social português. Foram milhares os que morreram; milhares os que ficaram estropiados; milhares os que ficaram com todo o tipo de sequelas, sobretudo psicológicas. São os despojos da guerra, que ainda hoje fazem sentir os seus efeitos, passados tantos anos…
Não foi apenas mas também para fugir à Guerra Colonial que em 1961 cresceu e se multiplicou a emigração para França, que naturalmente vinha já de anos anteriores e haveria de continuar pelos anos subsequentes. Muitos jovens não quiseram servir de “carne para canhão” em terras africanas e “preferiram”, porque não tinham outra alternativa, rumar a terras de França, mesmo que clandestinamente.
Obviamente, que a grande razão para o surto de emigração para a Europa, e sobretudo para a França, nos anos 60 do século passado, era a miséria que se vivia em Portugal, dominado pelo caquético Salazar, em fase de declínio político. O país não possuía grandes indústrias, nem serviços e a maioria da população definhava nos canseirosos trabalhos agrícolas, que mal davam para o sustentam.
Nessa época, emigrava-se para fugir à pobreza que grassava pelo continente e à guerra que despontava nos territórios africanos.
Ao longo deste ano, tem saído vasta bibliografia sobre os dois temas, de alguma forma, fracturantes no devir do Portugal Contemporâneo.

2. Uma das obras mais interessantes, na minha perspectiva, que foi publicada sobre a emigração para França foi exactamente o romance Longe do meu coração, do jornalista e escritor Júlio Magalhães, que estará em Fafe, em Março do próximo ano, no âmbito das III Jornadas Literárias.
Já saiu há cerca de um ano, mas o tema que inscreve ganhou toda a actualidade no que decorre.
O autor, continuando centrado no século XX português, enveredou por um tema fundamental que “marcou o século (passado), a cultura e o nosso povo para sempre: a emigração para França nos anos 60”.
Na verdade, como lembra Júlio Magalhães, “foram milhares os que saltaram a fronteira rumo a um futuro melhor. Para fugir a uma guerra colonial, sempre presente numa determinada geração de portugueses. À procura de trabalho, de comida, de uma oportunidade, de realizar um sonho numa terra distante, longe de Portugal”.
Como sempre faz para a elaboração dos seus livros, o autor ouviu protagonistas desta saga lusitana, “gente ainda viva que se emociona, que recorda com saudade”. Ouviu testemunhos, leu relatos, viu fotografias da época.
E assim construiu um belíssimo romance com gente humilde e determinada dentro. Gente que tem o nome indelével da coragem, que levou a alma lusitana para terras de França e que triunfou nesse país distante, em resultado de muito sacrifício, muito suor, imensa dedicação.
Longe do meu coração tem como personagem central a figura corajosa, resistente, ambiciosa e inquebrantável de Joaquim que acaba por representar muita da alma portuguesa em terras de França.
O livro, nos seus primeiros capítulos, acaba por constituir um retrato das agruras e vicissitudes da emigração “a salto” para terras gaulesas, há meio século.
Primeiro, havia a vontade de fugir do país – da miséria e das perspectivas da guerra – em busca de um “destino melhor”, ou da terra das oportunidades, a França, “onde todos os sonhos são possíveis”. Depois, aparecia a figura do passador, a quem os futuros emigrantes pagavam parte da passagem, correspondente a metade do retrato rasgado, o qual seria recomposto e o resto saldado meses ou um ano após, quando as coisas já estivessem compostas.
Protótipo de muitos emigrantes ambiciosos, Joaquim declara, desde o início: “O meu país é aquele que me dá de comer e onde eu me sinto feliz e com razões para viver. E aqui não tenho que comer, vivo na miséria, este não é o meu país!”. Mais: “Se ficamos aqui ainda nos arriscamos a ir para a guerra e apanhar um tiro em Angola… ou então a morrer de fome!”.
Joaquim assume essa aventura de ir atrás de um sonho, o sonho de uma vida melhor, de trabalho na construção civil, “farto da miséria e da fome, de não poder falar com os amigos à sua vontade (…) mas não podia deixar de sentir um aperto no coração ao pensar na aldeia da Memória que deixava para trás, onde tinha nascido e se feito homem…”.
A obra de Júlio Magalhães é, na sua primeira parte, um documentário vivo da história da emigração a salto, neste caso, a partir de 1963, acompanhando a trajectória de Joaquim, da sua aldeia Natal à concretização do sonho. Na época, muitos atravessavam anualmente a fronteira de Vilar Formoso, “porta de saída de milhares de portugueses que desobedeciam ao regime salazarista”. Em Portugal, reinava Salazar e em Espanha Franco. As fronteiras eram policiadas rigorosamente, à cata de emigrantes ilegais. Por isso, a viagem dos clandestinos até França demorava semanas e constituía um trajecto feito de percalços e contratempos. Os homens andavam quilómetros sem fim a pé, andrajosos, por caminhos e atalhos, ou em intermináveis viagens em camionetas de transporte de gado. Os emigrantes clandestinos constituíam, nas palavras do autor e naquelas condições, “o gado silencioso, que tentava chegar ilegalmente a França”.
Atravessavam, com o máximo cuidado dos polícias e dos contrabandistas, a paisagem esmagadora dos Pirenéus, onde alguns ficaram para sempre e outros foram presos. Chegavam a Hendaya, onde compravam bilhete para a mítica estação de Austerlitz. Aí já estavam mais ou menos seguros, porque a França necessitava de mão-de-obra para o seu desenvolvimento.
Restava chegar aos “bidonvilles”, nos arredores de Paris, os célebres bairros de lata que, nos anos sessenta do século XX, formaram mesmo “a capital de Portugal em França”.
Depois de um mês de viagem, de fome e de cansaço, Joaquim chegou finalmente a Champigny-Sur-Marne, onde um tio já o esperava, e que configuraria a ansiada terra dos sonhos e das oportunidades, mas o que encontrou foi um imenso lamaçal, num dos maiores bairros de lata da Europa. As barracas eram pré-fabricados de madeira e de zinco, as camas eram fardos de palha espalhada no chão, não havendo fogão nem luz dentro das casas, apenas candeeiros a gás.
As condições eram escassas mas o trabalho não faltava. O país parecia um estaleiro. E os portugueses eram bons trabalhadores, “ganham e reclamam menos que os franceses”. O ordenado de Joaquim era de 600 francos, mais do dobro do que ganharia em Portugal, embora metade do que auferia um trabalhador francês com as mesmas funções. Claro que não havia contrato de trabalho, nem reivindicações, nem queixas. “Era trabalhar de sol a sol e calar”. Ali não era costume questionar nada, era arregaçar as mangas e trabalhar, 12 horas seguidas.
Depois, havia a incomensurável barreira da língua e a péssima imagem que os franceses tinham dos nossos patrícios: “somos porcos, cuspimos para o chão e só estamos aqui para fazer o trabalho que eles não querem fazer”.
A opinião reinante era a de que “os portugueses não são raça que se cheire. São bons trabalhadores, mas nada de conversas…”.
Porém, Joaquim, o herói deste romance, que partiu da sua terra do interior com apenas 19anos de idade, estava decidido a vencer em França e a casar com a francesa dos seus sonhos: “Queria vencer neste país, mostrar que os portugueses não eram só força bruta e que conseguiam vingar mesmo nas piores condições”.
E o certo é que conseguiu. Criou a sua empresa, casou com uma francesa (Françoise) e tornou-se um empresário de sucesso, tendo sido condecorado pelo Presidente da República em 10 de Junho de 2000.
Um romance que se lê com imenso prazer e que fala de um tema que todos mais ou menos conhecemos, porque há um emigrante, pelo menos, em cada família portuguesa.
Júlio Magalhães refere, a propósito da génese do seu livro, cuja leitura recomendo vivamente: “Escrevi este livro para que a memória não se apague nem o tempo leve essa indelével marca lusitana que é voar, sonhar, sofrer e sorrir”. Aliás, convém recordar, e Júlio Magalhães fá-lo, que esse drama em gente das vicissitudes da emigração clandestina entrou num longo e assumido silêncio por parte dos seus protagonistas: “não era história para ser contada. Apenas, e infelizmente, vivida e fechada a sete chaves e com cadeado na sua memória”.
Ainda bem que foi contada, e está a ser por vários autores. E já era tempo de ser feito. Afinal, já passaram 50 anos!...

Nota: como nota final, será de relevar que o livro inclui um conjunto de 12 fotografias de Gerald Bloncourt, que doou mais de uma centena de fotos (praticamente todas as que são publicadas) ao Museu das Migrações e das Comunidades, sedeado em Fafe. Três dessas fotografias publicam-se acima.


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