sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Ajuste de contas com a Constituição e o 25 de Abril


1. A deriva de direita está a ir longe de mais, sem qualquer pudor. Mais que uma agenda ideológica deliberada para empobrecer generalizadamente este país (com a óbvia excepção dos ricos, que continuam praticamente intocáveis, e dos políticos sedeados em S. Bento, a quem a crise não afecta minimamente, por desvergonha de todos eles), o que está em causa, por parte do governo e em especial de Passos Coelho e do funcionário do FMI Vítor Gaspar, é o determinado empenho em curso para alterar o paradigma político, económico e social fundado pelo 25 de Abril de 1974 e legitimado pela Constituição da República Portuguesa, dois anos depois.
Há inequivocamente, a pretexto da grave crise económica, uma estratégia política para alterar os fundamentos em que assenta a democracia tal como a temos vivido desde a estabilização constitucional.
A solene treta da “refundação” do programa de ajustamento, não passa de uma descarada tentativa de legitimar o desmantelamento do Estado Social, uma das bandeiras das sociedades modernas, como garante do acesso de todos os cidadãos a sistemas públicos em áreas fundamentais como a saúde, a educação e a segurança social.
Para lograr aquela estratégia, Passos Coelho lança o engodo ao Partido Socialista, como se não fosse contraditório um partido socialista embarcar em aventuras despudoradamente liberalizadoras. Obviamente, o PS não se mostra disponível para destruir o Estado Social, e ainda bem. Porque ao Estado incumbe defender o sector público da economia e da sociedade. O Estado não pode ser o provedor dos interesses das grandes empresas, da finança e da banca, que é o que este governo está a fazer.
E quando o primeiro-ministro ameaça que ou “refundação” ou um segundo resgate, todos concluímos há muito que um segundo resgate é inevitável, e menos doloroso do que triturar até ao osso os portugueses, em especial a classe média. É preciso mais tempo e mais dinheiro. Só a prepotência, a insensibilidade social e a teimosia de um político impreparado e incompetente como o que nos governa tem adiado o indeclinável. Porque a questão é tão óbvia como isto: se não há dinheiro para pagar a dívida nos prazos estabelecidos, a solução é renegociar, como qualquer doméstica ensinará. Renegociar prazos e juros perante uma troika que não passa de pura especuladora e destruidora da economia nacional (em pouco mais de um ano de resgate, Portugal perdeu 428 mil empregos), que por isso devia ser incriminada e os governos que conduziram ao “buraco” onde nos encontramos. Mas para isso é necessário um governo que não passe de mero capacho da senhora Merkel; que a tudo diga ámen e curve servilmente o cachaço. É necessário um governo que tenha vontade política de dialogar e negociar, não apenas cumprir, obedecer, ceder.
Ou seja, é urgente outro governo: este deveria ser demitido sem mais delongas por má governação e por “embuste”, como disse um destes dias o insuspeito Medina Carreira. Não cumpriu nada do que prometeu e executou tudo em contradição com o que consta do seu programa eleitoral.
 
2. Enquanto tal não acontece, Passos fala agora da “reforma mais profunda” do Estado. A reforma poderia aprofundar-se, se até ao momento tivesse havido alguma reforma. Este governo não reformou coisíssima nenhuma. Limitou-se até agora a cortar salários, aumentar impostos, empobrecer os cidadãos. A única reforma executada por este governo consistiu em levar o fisco ao fundo dos bolsos dos contribuintes.
Prometeu cortar “gorduras” do Estado, mas até agora limitou-se a engordar o mesmo Estado com uma chusma de “boys” da sua rede clientelar, ditos “especialistas” (de coisa nenhuma, a não ser em chorudos vencimentos).
Corta ordenados aos trabalhadores e pensões aos reformados, mas não corta às luxuosas frotas automóveis de ministros e deputados, aos gabinetes e assessores, aos ordenados dos ministros e deputados, às viagens, às mordomias do aparelho de Estado, a começar pelo governo, parlamento e Presidência da República. Era por aí que deveria começar o exemplo.
 
3. A ministra da Justiça é muito engraçada: quando há um mês os socialistas Mário Lino, António Mendonça e Paulo Campos foram alvo de buscas domiciliárias pelo Ministério Público, no âmbito do inquérito crime às Parcerias Público-Privadas rodoviárias, logo veio, chincheira, Paula Teixeira da Cruz sublinhar que “ninguém está acima da lei”, que “tudo deve ser investigado” e que “acabou o tempo” em que havia “impunidade”.
A semana passada, quando o nome de Passos Coelho apareceu na imprensa associado a escutas telefónicas no quadro do caso “Monte Branco”, numa situação que não está minimamente esclarecida na opinião pública, a mesmíssima pessoa veio indignar-se e clamar contra a fuga de informação, bla, bla, bla… Afinal, há ou não há pessoas “acima da lei”?!...
Ora, vá-se catar, senhora dona!...
 
4. Um conhecido banqueiro, aludia a semana passada ao que chamava “ditadura do Tribunal Constitucional”, quando este órgão veio claramente facilitar a vida ao governo. Esta semana, atreveu-se a declarar que o povo português ainda suporta mais austeridade.
O homem só pode estar louco, ou a gozar com a cara dos portugueses!...
 
("Escrita em Dia", Povo de Fafe, 02/11/2012)

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